Hilda Hilst é uma escritora que transita com segurança pela poesia e pela dramaturgia. Dispensando apresentações reducionistas, a autora ocupa, em nosso cenário cultural e artístico, um (entre) lugar que precisa ainda ser revisto com cuidado. Sem medo de se expor, deambulando entre o cânone e a transgressão ditada pelas suas inquietações e vivências, sem se acomodar no conforto do reconhecimento conquistado, a autora, com mais de cinquenta anos de produção literária, sempre se inovou e continua na ordem do dia. Este artigo se debruça sobre uma de suas obras, Ode descontínua para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio da obra Júbilo, memória, noviciado da paixão, de 2004. O título nos remete, de imediato, aos modelos tradicionais. Poesia e música se irmanam nos dez cantos que formam a ode. Trata-se, no entanto, de um poema moderno, que ao se reportar à tradição, formula, liricamente, apelos amorosos seguidos de uma recusa, bem ao gosto horaciano, mas, ao mesmo tempo, revitalizando o tema e trazendo-o para os nossos dias. O eu lírico se presta (e não se presta) a um eterno serviço amoroso de submissão e total entrega. Questões como o amor adulterino, a inacessibilidade da dama, a relação entre o amar e o poetar (MALEVAL, 2002) são topoi (ACHCAR, 1994) presentes nos textos da poetisa paulista, ainda que sujeitos a desdobramentos e variações. Além dos motes clássicos e medievais, a estrutura do poema rica em enjambement, faculta uma leitura ambígua que reverbera o estado de contradição que o amar e o poetar exercem no eu lírico feminino. O corpo do amado só existe porque ele próprio produz poesia, ou melhor, porque ela canta e quer encantar com as palavras. Aliada a tal ideia há a perspectiva de que a poesia existe e está presente somente porque o amado está ausente, o que nos leva a considerar a noção de representação de Carlo Ginzburg (2001). Na Ode há a evocação intertextual do mito clássico de Ariana abandonada e de um Dionísio resgatador. O canto de Ariana enfatiza, em seus lamentos as suas ardências, expressando imagens não usuais evocadas pela falta do amado. Casa e corpo formam, no texto, uma só estrutura. É para a Casa viva, “sonora, múltipla, argonauta” (HILST, 2004) que Ariana convida Dionísio. Flertando com a música, (tanto rítmica, quanto melódica e harmonicamente), os artifícios retóricos são abundantes. Não por acaso, quando o conjunto da obra poética da autora foi entregue a um músico, Zeca Balero, ele, de imediato, selecionou para musicar os dez cantos que compõem a Ode. Procurando dar consistências às nossas reflexões, embasamo-nos teoricamente em Francisco Achcar, Maria do Amparo Tavares Maleval, Salvatore D’Onofrio, Heinrich Lausberg, Carlo Ginzburg entre outros.