Neste artigo, propõe-se uma leitura do romance Leite Derramado (2009), de Chico Buarque, considerando os deslocamentos do sujeito pela cidade como fio condutor de uma narrativa de memória que transcende a temporalidade em seus moldes convencionais, cronológicos, e insere o enredo no espaço movente da cidade, lugar e metáfora na construção de identidades. Em Leite Derramado, o narrador, Eulálio Montenegro d’Assumpção, centenário e moribundo, apresenta suas memórias, tecidas hibridamente a partir de histórias de família que formam histórias do Brasil, num transito que vai do microcosmo individual ao testemunho do macrocosmo sócio-político. Essas memórias encenam-se na cidade do Rio de Janeiro, modificada ao longo do tempo por anseios “modernizadores”, que, em nome do progresso, demolem o antigo para dar lugar a monumentos que já nascem como ruínas de uma era em constante transformação. Segundo Renato Cordeiro Gomes (2008), o sujeito em trânsito constrói a leitura da cidade a partir da conjunção entre a “cartografia afetiva” e pontos de referência do real. É nesse sentido que o narrador de Leite Derramado se apropria também de uma memória da cidade como possibilidade de reivindicar sua identidade, mesmo que engendrada em sistemas sociais dos quais ele preferia se excluir. As transformações no espaço, apenas vislumbradas pelo relato de sua trajetória, são reinventadas e redescobertas porque a verossimilhança não pretende uma apropriação de critérios científicos ou enciclopédicos para a composição de memórias. A cidade, em suas configurações do real e nas reinvenções simbólicas evocadas pelo narrador, é apresentada através de uma desconstrução da historiografia conduzida por uma leitura afetiva, que parte da experiência do narrador, do olhar retrospectivo de um homem à beira da morte.