“Alguns têm a volúpia e a coragem do zero”, afirma Décio Pignatari, ao referir-se a Oswald de Andrade. O presente trabalho procurará sustentar que a força da criação antropofágica está lá mesmo onde menos se espera. Após o encontro com Prestes em Montevidéu, o antropófago entra nas trincheiras do partido comunista brasileiro. O pensamento antropofágico atravessa, então, uma interessante transformação: passa a ser casaca de ferro da revolução proletária. Independentemente da veemente rejeição dos “companheiros” de partido, o marxismo impôs importantes questões a serem trabalhadas pela Antropofagia. Se antes podemos defini-la como um sistema dual mas não dicotômico, o contato com o marxismo impõe a Oswald o desafio de adequar seu pensamento às bases de um conflito de dois polos inconciliáveis, bem ao gosto da luta de classes. Neste sentido, o Homem do Povo, jornal experimental de apenas 17 dias criado em conjunto com Pagu; bem como o Marco Zero – uma tentativa de romance mural inspirado no muralismo mexicano – são profundamente emblemáticos: além de uma espécie de rebelião contra a segunda dentição da revista antropofágica, também a fase mais diretamente engajada de Oswald. Por isso mesmo, uma pedra no sapato dos críticos (não apenas de Antônio Cândido). A interpretação padrão deste romance encontra guarida no clichê que opõe o campo e a cidade. Não há dúvidas que esta chave é de considerável intensidade no contexto atual, em que as forças do interior e, portanto, da terra, como o índio, enfrentam o poder do latifúndio e do capital. Busca-se, aqui, no entanto, seguir os passos de Oswald, e analisar o Marco Zero como um último esforço, fracassado, de conciliar antropofagia e marxismo. Neste sentido, lá onde Oswald de Andrade falha é que prestaremos mais atenção: o quinto volume de Marco Zero estaria dedicado à “presença do mar”, no caso, ao imperialismo. Defenderemos, então, que é a oposição dicotômica entre Terra e Mar que o leva a abandonar o projeto ambicioso do Marco Zero e impulsiona Oswald a arriscar-se no caminho da antropofagia filosófica, cujo corolário está na formulação do matriarcado de “Crise da filosofia messiânica”. Seria, portanto, em termos lacanianos, a Antropofagia uma espécie de sinthoma de Oswald, sua dimensão de incurável? A resposta a esta questão é insuficiente, à medida que as reflexões do antropófago brasileiro poderiam fazer dele um precursor de Lacan e sua tradição (que remonta desde Heidegger, passando por Blanchot até Barthes): sobretudo o último Lacan, de Lituraterra e da clínica do real, em que “decisiva é somente a condição de litoral”. Toda a questão das crises do nome-do-pai e do discurso do mestre, que via no Totem e Tabu de Freud uma última afirmação conservadora, apontam para uma aproximação entre antropofagia e psicanálise, outrora vistas como absolutamente incompatíveis. Se não absolutamente incompatíveis, ao menos abertas a uma experiência de atrito: experimentadas enquanto litoral. Ou, em lacanês: lituraterrar.