A Invenção de Orfeu, publicada por Jorge de Lima em 1952, não comporta apenas a compreensão de que seja uma modernização da epopeia. Para além disso, revolvendo as camadas da tradição literária ocidental e valendo-se, para isso, de estratégias construtivas eminentemente metamórficas e atentas aos acontecimentos da modernidade, ela traz à tona a possibilidade de uma reconsideração cultural da emergência de uma relação distópica entre homem e seu entorno, suas circunstâncias. Já nos primeiros versos do longo poema, um dos textos deliberadamente reformulados é a epopeia de Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas. E, com isso, o barão – que surge destituído das insígnias que sustentavam a autoridade e a glória cantadas pelo poeta português –, se lança a percorrer paisagens contornadas por ruínas, por encavalgamentos de tempos diversos que fazem coexistir em uma mesma instância a costa brasileira do tempo da chegada dos europeus, a Veneza medieval, a Lisboa metropolitana, o Rio de Janeiro de Pereira Passos e do Estado Novo. O elemento que permite tal leitura é precisamente a consideração dos restos produzidos por cada tentativa de o homem construir um mundo seu, um mundo próprio. Há nessas formulações a proposta de uma elaboração da experiência moderna que vem juntamente com o caráter inquietante – i.e., que promove a emergência e o retorno do recalcado - inscrito na ação humana. Assim, se em uma das passagens do poema se diz que "nem tudo é épico e oitava-rima / pois muita coisa desabada / tem seu sorriso cotidiano" (V, 2), não é fortuito que em outros momentos do percurso o "barão, / de manchas condecorado" (I, 1) se depare com o assombro dos ameríndios extintos no mau encontro da dominação por Um (cf. Pierre Clastres). Nesse sentido, a Invenção de Orfeu perfaz seu relato também através das vozes fantasmáticas que pervivem, enquanto luminescências obscurecidas, nos subsolos das paisagens brasílicas. Esse é, então, um dos momentos em que a possibilidade de extinção – bastante contemporânea, se lembramos da espantosa cotidianidade do desastre – apresenta um espaço de confluência entre o já morto e o ainda vivo. Espaço esse que, no tempo de agora, permanece aberto à consideração tanto do desdobramento da biopolítica em tanatopolítica – em que a conformação política do homem se estabelece pela exclusão da vida e pela formulação de uma comunidade de espectros (cf. Fabián Ludueña). Nesse sentido, o savoir-faire pautado pelas montagens e encontros aparentemente disparatados da Invenção de Orfeu instiga e convulsiona um processo de imaginação incidente tanto sobre os corpos viventes quanto sobre as demandas de sentido insistentemente irrespondidas.