O romance El ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha de Miguel de Cervantes Saavredra (1547-1616) é considerado um marco iniciador do romance moderno, o protagonista não é um herói clássico como Hércules, Ulisses ou o Rei Arthur, mas um homem comum com suas mazelas, desejos, inseguranças e percepção não mais ubíqua da realidade. Miguel de Cervantes era filho de um cirurgião acomodado de Alcalá de Henares. Não temos notícia de se ele estudou, onde e quanto tempo, poucos dados de sua biografia são verificáveis, além de ter sido soldado, tentado entrar para a corte de Felipe II, ter trabalhado como coletor de impostos, antes de tornar-se escritor e reinventar o gênero do romance. Cervantes era um homem preso na crise de seu tempo, não havia mais honra de cavalaria e de nobreza, a Espanha estava mergulhada num período de amplas possessões de colônias, riquezas e onde a intriga, o maldizer e a importância familiar e política eram moedas de troca.
Cervantes, herdeiro desta tradição, transformará esta crítica escrachada em uma análise sutil e acurada da sociedade espanhola de seu tempo, convertendo seu personagem principal, Alonso Quijano, em um representante do sonhador e do idealista, que já não tem mais lugar no chamado mundo moderno. O personagem Alonso Quijano vive num mundo de fantasia, lendo sem parar livros de cavalaria, acaba tendo problemas em separar a realidade da ficção. O livro que mais influencia Quijano é Amadís de Gaula, primeira novela de cavalaria de que se tem notícia na Península Ibéria, sua origem é controversa, mas parece ser de origem portuguesa e já há registros de referências a ela no século XIV. Mas, entre as obras citadas temos obras verdadeira e falsas, além de várias menções as obras do autor e de seus contemporâneos. O romance de Cervantes foi atualizado nas épocas posteriores e os diálogos foram estabelecidos com os valores e características destas épocas, com acréscimos e prejuízos ao original. O cinema tem proporcionado isto nos últimos 115 anos, e a última adaptação feita por Terry Gillian é abundante neste jogo de espelhismos.
O cinema inspirou-se na narrativa do romance do final do século XIX (e em sua tradição) para desenvolver sua linguagem, e sempre teve nele um repertório inesgotável para suas adaptações. Dentro da criação da arte cinematográfica, já nos seus primórdios, o fazer artístico criou regras e um sistema de organização, chamado gramática cinematográfica. Já no nascimento do cinema, a questão dos gêneros (ficção ou registro do real – documentário) que estavam sendo feitos, baseados no teatro e na literatura, já era pensada. O número de adaptações cinematográficas de Don Quijote já atingiu 40 títulos conhecidos.
Esta comunicação se propões a comentar a versão do diretor inglês de Terry Gilliam, The man who killed Don Quixote (2018), que é uma coprodução com a Espanha, e que traz a figura de Dom Quixote para a atualidade e tem marcas do cinema e da arte contemporâneo. O jogo de citações nele estabelecido dialoga diretamente com a obra de Miguel de Cervantes, atualizando e ampliando sua narrativa. E proporciona a sobrevivência de uma literatura e cultura, que tendo quatro séculos parece ter acabado de nascer.