Na esfera de sua produção artística, ao escrever A paixão segundo G.H., verifica-se, nesta obra, o sofrido resultado das indagações pessoais de Clarice Lispector com relação ao contraste entre transcendência e imanência, pois G.H. vislumbra, da existência, a autenticidade. Nesse trabalho com a linguagem, podemos perceber um tom, um etos da escritura clariceana, uma escrita de si que a engaja e individualiza como uma significativa voz em nossa Literatura. Nesse sentido, há um Valor inerente à forma literária, através da qual “grandes temas verbais da existência” são escritos, sob uma “dimensão vertical e solitária do pensamento”, conforme pensa Roland Barthes (2004).Verifica-se, pois, na poética clariceana, um estilo inconfundível de escrita, cuja fisionomia pode ser percebida pela forma com que a escritora apreende a perplexidade do contexto de “crise dos fundamentos da vida humana”, conforme o entende Eric Hobsbawn, no “Breve século XX”, processo que resulta de sua formação literária e cultural, sobretudo no que concerne à apropriação e transformação de leituras realizadas por ela, e que se insinuam em A paixão segundo G.H.. Neste romance, a experiência-limite vivenciada pela protagonista, ao degustar da massa branca do interior da barata, possibilita-nos uma reflexão existencial, decorrente do abalo sofrido pela condição humana, nesse conturbado contexto, por intermédio de uma linguagem instigante, tecida de forma paradoxal e transgressora, no embate das convenções sociais e morais. Sob o recurso estilístico da paródia, a paixão de G.H. e a paixão da narrativa contrastam com a perspectiva transcendental da paixão de Cristo, uma vez que tanto G.H. quanto a narração percorrem um caminho penoso: G.H. enfrenta o desvelamento de sua máscara, após desiludir-se das convenções, antes aceitas como verdades inquestionáveis; enquanto que a narrativa, com o seu fracasso, desencadeia-se no “malogro da voz”, almejando o indizível. Como uma perspectiva imanente da paixão, o livro de G.H. aponta-nos a nossa condição como a única possível, “já que ela é o que existe, e não outra” (LISPECTOR: 1998, p. 175). A escrita desta única paixão possível, a nossa condição, faz-se um rito em seu próprio sofrimento de fazer-se e desfazer-se; ritual da memória de nós, de quem somos. Este trabalho integra a pesquisa “Histórias de Leitura: Cânones e Bibliotecas Pessoais”, da qual resulta também a Dissertação de Mestrado intitulada Uma “alegria difícil”: A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector (2009), sob a Coordenação da Profª. Drª. Odalice de Castro Silva, do Programa de Pós-Graduação em Letras – Literatura Brasileira, da Universidade Federal do Ceará.