Em O animal que logo sou, Derrida se pergunta se seria possível existir uma autobiografia antes do pecado original, antes da ideia de nudez e do desenvolvimento mútuo do pudor e da técnica. L’animal que donc je suis. Suis é uma palavra homógrafa, conjugação dos verbos être e suivre na primeira pessoa do singular. A ambiguidade criada por Derrida é proposital: o homem segue o animal no sentido da sucessão e da herança ou está atrás dele no sentido da caça e do adestramento? O ato de nominação dos animais, evento que se dá antes da criação da mulher e da nudez, é a gênese dessa posição de sequência, consequência e perseguição. A ascendência do homem sobre o animal não se dá no tempo, é a própria gênese do tempo, um tempo vetorial de que precisa o pecado original para produzir seus efeitos. Em oposição a uma autobiografia confessional, em que a verdade é sempre uma dívida, Derrida propõe a limitrofia, uma experiência que se avizinha do limite, mas também se alimenta nas margens dele. A terra, em sua polissemia, é o elemento que corta tanto a autobiografia confessional quanto a limitrofia. Ao dedicar apenas o penúltimo capítulo do Livro I dO Capital à enunciação do pecado original da sociedade capitalista, a acumulação primitiva, Marx situa a pré-história de roubo e expropriação da terra antes da história, trata-se da proibição fundamental do capital que jamais deverá ser repetida, ainda que o seja de forma sintomática. Ao fixar a diferença entre o ato criador e a criatura, Marx faz com que a terra perdida na acumulação primitiva do capital só possa reaparecer como terra prometida. Para o crítico literário Araripe Júnior, a obnubilação, a perda da consciência provocada pela terra, faz da incorreção dos autores brasileiros um estilo próprio. Se o sangue que corria nas tintas de nossa melhor literatura era o de uma nova Roma, não seria o ius sanguinis que explicaria o novo vigor que o naturalismo assume nos trópicos, mas o ius soli. Enquanto em Marx a história da terra é a história fora da história, para Araripe, ela é o começo da história. Em Meu tio o Iauaretê, Guimarães Rosa fala da terra a partir de uma das instituições centrais do matriarcado, o avunculato, o domínio da casa pelo tio materno e a ausência de herança. Deserdado, o onceiro que vira onça vê na terra deserção, deserto – sertão. Não se trata aqui do deserto que institui o monoteísmo judeu, mas do deserto enquanto crise de parentesco que caracteriza o mestiço. Se o matriarcado é cortado por uma ausência, seja ela de terra ou de sangue, o conto rosiano é marcado pela incerteza quanto à morte do personagem autobiográfico no final. O fim como quase-morte é a autobiografia antes do pecado original a que se referia Derrida, afinal, a descristianização da vida exige também a descristianização da morte. Meu tio o Iauaretê é a falta-em-ser que é a ausência do fim da história, a vida sem meio-do-caminho.