OLIVEIRA, Susan Aparecida De. Onganda: a terra como "casa". Anais ABRALIC Internacional... Campina Grande: Realize Editora, 2013. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/4580>. Acesso em: 22/11/2024 01:14
Em 1999, Ruy Duarte de Carvalho, antropólogo, cineasta e escritor angolano, publicou a sua etnografia dos pastores nômades da região fronteiriça entre o sudoeste da Namíbia e sul de Angola sob o título "Vou lá visitar pastores, exploração epistolar de um percurso angolano em território kuvale (1992-1997)", um livro considerado de difícil classificação por boa parte da crítica literária e antropológica e cuja principal característica é o deliberado caráter de mobilidade que perpassa do objeto de pesquisa a um método, ao meu ver, fenomenológico de imersão na cultura kuvale. A escrita epistolar de Carvalho – que compõe o seu diário de campo ao modo de um relato de viagem - é resultado de transcrições de fitas cassete gravadas durante a travessia da fronteira e que serviriam como guia a um amigo jornalista da BBC de Londres, seu atrasado companheiro de viagem que nunca chegaria. Nesse sentido, as transcrições de Carvalho se destinam à ficcionalidade dessa interlocução, bem como atendem ao preceito da etnografia moderna que enxerga o mundo como uma diversidade epistêmica de culturas em contato, sendo que a própria etnografia consiste em uma pluralidade de perspectivas e formas de tradução e escrita. Os pastores kuvale correspondem ao que há de mais remoto no imaginário angolano, são os mucubais marginalizados pela sociedade e pelo Estado, povos fora da geografia e da história. A partir desse pressuposto, argumentarei que a narrativa movente de Carvalho, ao tirar essa exclusão da invisibilidade, propõe uma crítica do contrato social vigente em Angola desde o período colonial, sendo que essa crítica não é meramente tropológica e pedagógica tal como defende Osvaldo Manuel Silvestre no artigo "Ruy Duarte de Carvalho ou do contrato social II" (2008), mas visa a pactuação necessária com o que Carvalho chama de atualidade do arcaico, com a “inovação social e económica” que representam os “sistemas milenares” (CARVALHO, 1999, p. 274-276). Interessa-me, sobretudo, discutir essa perspectiva a partir do conceito kuvale de onganda, palavra bantu traduzida ao português como casa. Essa tradução, presente na obra de Carvalho, é menos linguística que cultural e política - a palavra casa é sempre usada entre aspas pelo autor - e sustenta no cerne do problema da inteligibilidade da episteme kuvale a sua exclusão do contrato social, pois o que ele vê e descreve como onganda é propriamente um conjunto de saberes, uma ecologia nômade que se reporta não a um lugar específico de direito privado, mas à terra a qual o ethos dos sujeitos migrantes se liga por vínculos de possibilidades.