O premiado escritor argentino Martín Kohan começa seu romance Duas vezes junho com a relevante pergunta: A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança? Essa pergunta, recolhida pelo autor nos documentos de depoentes torturados na ditadura militar argentina, tem a palavra “começar” grafada “começar” – no original “empezar” está escrito “empesar”. Daí por diante, o texto apresentará uma narração extremamente fragmentada e encaminhada por dois polos: o da escrita, sintetizando o aspecto material do texto literário, em outras palavras, o aspecto estético, e, para isso, utilizando recortes de diversas tipologias textuais, sendo a histórica uma delas; e a narração de uma série de eventos de extrema violência cometidos contra a população civil, sobretudo contra o corpo feminino. No artigo Historia y Literatura: La verdad de la narración, Kohan afirma que conceber a história como novela implica em inverter uma forma de articulação: não é a literatura a que, subsidiária do discurso da verdade, serviria apenas como esqueleto narrativo, mas a história que, concebida como novela, se integra às leis da ficção literária. O presente trabalho destina-se a avaliar esse romance, considerando as duas leituras, dois saltos, que nos ofereceu até o momento: O primeiro dos saltos, tendo a leitura de O que é literatura?, de Jean-Paul Sartre, e sua preocupação com o engajamento da literatura, como balizadora, é o do texto para o referente imediato, ou seja, a leitura do texto como documento de clara denúncia, mas que, paradoxalmente, não ousa assumir-se, permanecendo insinuada apenas; o segundo salto está ligado às estratégias de como essa suposta denúncia, que nos parece evidente, chega a sugerir um mecanismo irônico na organização textual: a uma cena de forte violência – forte para o texto, não para a ditadura –, segue-se um chiste, uma informação catalográfica. Avaliamos como o autor, em Duas vezes junho, atesta sua afirmação valendo-se de “fatos” que trazem consigo uma carga muito marcada pelos sangrentos dias da ditadura militar argentina. Em síntese, a obra como monumento. Considerando mais uma vez a questão do estado de exceção e que esse evento se reproduziu também no nosso país, o texto de Martín Kohan oferece ainda a possibilidade de verificar a participação de outros personagens nesse cenário, personagens que, não estando ideologicamente convencidos, prestam-se ao papel de auxiliar das forças violentas, sendo mesmo uma peça fundamental para a movimentação das engrenagens que tornaram possível a barbaridade que sabemos. Diante disso, cremos ser de extrema relevância a discussão a respeito desse autor e de sua narrativa, uma vez que traz à luz uma possibilidade de caminho para a literatura contemporânea na Argentina e sua relação com as histórias literária e oficial, além de ampliar a aproximação com os países de língua espanhola, estímulo fomentado pelas políticas públicas de nosso país.