Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon são duas das mais consagradas escritoras brasileiras da atualidade. Dedicadas à ficção – sob a forma de romances e contos –, ambas também se renderam ao memorialismo, experimentando, portanto, a escrita de si. A primeira escolheu autorrepresentar-se por meio de textos híbridos, em que a ficção e a memória se imbricam indissoluvelmente. Oscilando entre a primeira e a terceira pessoa, esses textos compõem uma “trilogia da memória”, constituída pelos livros Invenção e memória (2000), Durante aquele estranho chá (2002) e Conspiração de nuvens (2007), aos quais também se pode somar a coletânea A disciplina do amor (1980). Já Nélida Piñon entregou-se abertamente às memórias em seu Coração andarilho (2009), livro em que refaz o seu percurso existencial, sob o viés da dupla cultura que a norteia: a brasileira e a galega. Consciente de que a memória não se (re)constrói sem a invenção, este trabalho aborda as diferentes estratégias de autofiguração das duas escritoras nas obras citadas, destacando, nos textos de Lygia, o fragmentário e o lacunoso, traços que apenas esboçam um autorretrato da escritora – fugidio e mutável, como Michel Beaujour caracteriza essa modalidade de escrita de si. Em Coração andarilho, ao contrário, Nélida Piñon – ainda que assuma a incompletude de seu relato – procura construir uma autoimagem em que se afirmam com nitidez os traços que a definem como escritora e intelectual: a tradição e o amor familiares; a vocação precoce para a escrita; o prazer de viajar pelo mundo; a constante interrogação sobre a Galícia e, notadamente, sobre o Brasil. Deste modo, Coração andarilho não é apenas a autobiografia de Nélida Piñon: é também um “retrato” do Brasil. Ou, como afirmou Marcelo Pereira, num recente estudo sobre o livro de Nélida: em Coração andarilho, a escrita de si é, simultaneamente, escrita da pátria.