Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945) foi um dos fundadores do modernismo brasileiro, autor do romance Macunaíma (1928) e pioneiro no campo da etonomusicologia. Em 1935, organizou um Departamento de Cultura em São Paulo com o objetivo de “conquistar e divulgar a cultura brasileira”. O âmbito de seus interesses era amplo: realizou missões para catalogar a música e o folclore popular brasileiros, percorrendo várias regiões do país e reunindo uma notável coleção fonográfica-cultural. Em seu livro Namoros com a Medicina (1937) confessa o desejo nunca realizado de ser médico: “Me tornei médico às avessas, isto é, doente. Mais ou menos imaginário. Sou duma perfeição prelecional no descrever os sintomas das minhas doenças. Li bastante sobre os bastidores da Medicina, e principalmente a sua história. E quando encontrava qualquer referência, fichava. Por quê? Fichava porque os instintos viciados, ignorantes das proporções e dos anos, continuavam imaginando que ainda seria médico um dia”. Michel Giacometti (Córsega, 1929-Faro, 1990) instalou-se em Portugal em 1959, quando soube que tinha tuberculose, e de lá não saiu mais, desvendando para os portugueses um país que muitos de seus habitantes desconheciam. Seus trinta anos em terras lusitanas foram dedicados a investigar a cultura popular portuguesa, particularmente a música e seus cantores, reunindo farto material também da tradição oral, e interessando-se muito particularmente pelo que ele chamou de “Medicina empírico-tradicional”. Em 2009, este material foi publicado no volume Artes de cura e espanta-males, prefaciado pelo médico João Lobo Antunes, que comenta: “Os ensaios que compõem este livro são, no fundo, simples notas de pé de página à admirável pesquisa de Giacometti, em que um naipe de cultores das várias especialidades em que se quebrou a Medicina do nosso tempo vem glosar o mito, a imaginação, a superstição, a crendice, mas também a astúcia, a experiência, a tradição de um povo contido neste retângulo impaciente da ponta da Europa, tão pequeno de dimensão quanto variado na linguagem, na cultura e nos costumes”. Neste trabalho, pretendo aproximar esses dois pesquisadores tão afinados entre si e dar notícia destas recolhas no Brasil e em Portugal, a partir da leitura do ensaio de Mário de Andrade e de algumas fichas de Giacometti, que revelam a sensibilidade de seus compiladores e analistas para universos de filosofia popular tão ricos e aparentados, nos quais se encontram indícios de antigos mitos, práticas e convicções, e do mistério e da fé revelados na escuta da esfera íntima e familiar das populações, sobretudo as mais humildes, destes países irmãos.