SILVA, Hudson Marques Da. Sensação e percepção em ensaio sobre a cegueira, de josé saramago. Anais ABRALIC... Campina Grande: Realize Editora, 2012. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/1813>. Acesso em: 23/11/2024 23:35
O Ensaio sobre a Cegueira revela um importante diálogo entre literatura de ficção e teorias da percepção, visto que proporciona um debate acerca de como se manifesta as sensações através de cada sentido e seus efeitos de significação. A esses sentidos – visão, audição, olfato, tato e paladar –, Borges Filho (2007; 2009) nomeou gradientes sensoriais. O termo gradientes surgiu do efeito de gradação que ocorre na relação sensorial sujeito-sujeito e sujeito-espaço. Borges Filho (2009) ressalta que para alguns teóricos, a exemplo de Edward T. Hall, em A dimensão oculta, os sentidos humanos podem ser divididos em receptores remotos (que examinam o mundo à distância: olhos, ouvidos e nariz) e receptores imediatos (que examinam o mundo de perto: tato, pele, membranas e músculos). E a relevância de estudar essa relação gradativa no texto literário não tem sido observada, pois, como atenta Borges Filho (2009, p. 167), entre os críticos e teóricos, “[...] quase nenhum se importou com o modo como as personagens se relacionam com esse espaço do ponto de vista sensorial.” Aqui está uma das principais relevâncias deste trabalho, que consiste em analisar a percepção sensorial das personagens em questão. O Ensaio revela-se, em um primeiro momento, a partir de um mundo com fortes necessidades visuais, uma vez que, pelo modo como é referenciado, só se é possível viver com esse gradiente sensorial, já que o espaço descrito na obra se trata de um grande centro urbano, com diversas e labirínticas ruas e construções, além do trânsito agitado, tanto de pessoas circulando pelos espaços públicos quanto pelos mais variados tipos de veículos, formando um caos urbano dentro do qual, sem a visão, não seria possível sobreviver. Nesse contexto, a epidêmica cegueira surge como uma ruptura de um mundo percebido (porém, não percebido verdadeiramente) pela visão. A partir de então, as personagens necessitam sobreviver apenas com a audição, o olfato, o tato e o paladar. E sendo aquele mundo estabelecido para se viver principalmente pela percepção visual, naturalmente, ele teria de ser transformado, como de fato ocorre, a fim de que as personagens possam se adaptar à nova forma de ser-no-mundo. E a transferência da visão para os demais receptores, incluindo os receptores imediatos (mais próximos), forçadamente levou esses indivíduos a aproximarem suas relações, sobretudo, sujeito-sujeito. Com a cegueira, além da audição e do olfato, as personagens passam a utilizar acentuadamente o tato para a localização espacial e para o reconhecimento de outros sujeitos. Todavia, o paladar (o receptor imediato mais próximo) não é tão explorado pelas personagens. A priori, isso ocorre porque raramente pessoas e espaço são percebidos por esse gradiente. Entretanto, talvez isso possa ser um indício também de certa relação de distância entre as personagens que persiste no decorrer da narrativa, fazendo com que elas se mantenham no âmbito intermediário da gradação perceptiva (audição, olfato e tato). Os fatores que antes podiam ser visualizados agora só podem ser ouvidos, cheirados, tocados ou saboreados. E cada gradiente sensorial vai proporcionar um significado para a construção do enredo.