A pandemia do coronavírus, emergência sanitária iniciada em 2020 com o alastramento do vírus COVID-19 em níveis globais, vem exacerbando as inúmeras desigualdades sociais, a negação e violação de direitos, ao mesmo tempo em que evidencia o caráter do Estado no Brasil. Semelhante às epidemias de outrora, como as do Cólera e do Zika Vírus (BELTRÃO,1999; SANTOS, 2020; CASTRO & NOGUEIRA, 2020), a pandemia atual desencadeia inúmeros efeitos sociais, em diversos âmbitos da vida humana, que merecem ser estudados. Neste paper, coloco em destaque o período da pandemia do covid-19 em que o isolamento social foi regulamentado como um dos principais mecanismos para conter a disseminação do coronavírus e tudo ou quase tudo, no mundo inteiro funcionou a partir da casa por meios virtuais. De uma simples manifestação de felicitações ao exercício de nossas profissões passamos a necessitar de um aparelho eletrônico e de internet como meios para realiza-los, exigindo de todos nós muitas adaptações e aprendizados. Mas falarei apenas a partir de uma dimensão, as mudanças que ocorreram no exercício da minha profissão. Sou professora efetiva de sociologia da educação básica, vinculada a rede pública do estado do Pará. Hoje estou exercendo minha licença aprimoramento, mas quando a pandemia chegou ao Pará até o término da orientação do governo do Estado para o exercício do ensino remoto, por assim saber, até julho de 2021, eu estava no exercício do magistério com 17 turmas sobre minha responsabilidade em 3 escolas no município de Ananindeua. Com a chegada da pandemia no Pará e no Brasil, a vida virou uma loucura e a instabilidade tomou conta das escolas em que trabalho. Iria o governador suspender as aulas? Como iríamos nos proteger do coronavírus? O Brasil viveria o mesmo caos que a Itália ? Enquanto professora da educação básica me coloco como nativa/etnógrafa (PEIRANO, 2014), pois foi neste contexto de suspensão das aulas, transferência de meu trabalho para casa, adaptação ao ensino remoto, que percebi minha realidade como fonte de pesquisa e me perguntei: as percepções que tenho das mudanças que a pandemia provocou em minha vida guardam similaridades ou diferenças com a percepção dos demais colegas de trabalho? Na pandemia, a tendência é que as desigualdades sociais se aprofundem ainda mais; como, então, estas desigualdades irão se manifestar na educação? Essas foram algumas das questões que me motivaram a realizar o mestrado no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. Com as reflexões aqui expostas, tenho por objetivo avançar na análise de parte das informações que levantei em aproximação de campo no período de janeiro a fevereiro de 2022, quando realizei conversas informais com 24 profissionais da educação, através de visita a 4 escolas estaduais no município de Ananindeua , tendo por foco, as mudanças nas relações sociais que emergiram na vida desses profissionais no contexto da pandemia do covid 19. Neste trabalho, darei ênfase ao período da pandemia, de janeiro a julho de 2021 , quando com as aulas presenciais completamente suspensas por todo o ano de 2020, o governo do Estado do Pará orientou a adoção do ensino remoto nas escolas estaduais. A partir da minha experiência e do depoimento de 08 interlocutores, sendo 05 professoras e 03 professores das 04 escolas que visitei, quero aqui focar no momento em que o Estado adentra a casa de cada professora e cada professor, observando as medidas que o Estado adotou para gerir a educação formal no período do ensino remoto, e como as professoras e os professores a partir de suas casas perceberam e vivenciaram as regras estabelecidas. Através do depoimento das professoras, dos professores e de minha experiência profissional fica perceptível que no exercício do ensino remoto, o Estado, enquanto agente regulador e garantidor da educação, preocupou-se muito mais com o controle sobre as professoras e professores exigindo planilhas quinzenais, do que com a realização da aula em si. A efetiva oferta da educação ficou totalmente descoberta na medida que o Estado não garantiu a logística necessária para a realização das aulas. Souza Lima e Facina (2019) refletem que o fazer-se Estado é um processo permanente e em disputa figurados em narrativas encantatórias que para serem quebradas e ultrapassadas precisam ser inseridas na história, ganhando nomes e rostos. Neste sentido é importante perceber o Estado numa perspectiva relacional, ganhando nomes e rostos diferenciados a depender de quem se movimenta. A mãe ou o pai de aluno que demanda a professora ou o professor explicando que não tem celular ou internet para viabilizar a aula no horário que sua filha ou filho está regularmente matriculado está enxergando o professor como o responsável por encontrar uma solução e viabilizar a aula para seu filho, ou seja, é como se o professor fosse o Estado. No entanto, quando a professora ou o professor questiona a quebra de seus horários de trabalho, ou mesmo as exigências controladoras da secretaria de educação / governo do Estado, estes assumem a condição de trabalhadores e trabalhadoras e olham para o Estado como um ente exterior, com a responsabilidade de garantir o direito à educação, que passa também por garantir direitos e condições para a professora e/ou professor realizarem sua atividade laboral. A pandemia escancarou e aguçou o conflito estabelecido pela exploração do trabalho da professora e do professor pelo Estado. O aprofundamento desse conflito ocorre porque o fazer-se Estado no Pará e no Brasil, se deu pela ausência do mesmo, transferindo responsabilidades suas para os profissionais da educação e para os pais e/ou responsáveis dos estudantes, ao não enxergar a garantia de acessibilidade ao ensino remoto como atribuição sua. O Estado só se fez presente, imprimindo uma rotina de trabalho ainda mais exaustiva, exigindo o preenchimento de inúmeras planilhas que visavam controlar a oferta do ensino e tornando a vida ainda mais laboriosa. Referências: BELTRÃO, Jane, F. Cólera, o flagelo da Belém do Grão Pará. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 1999. MARQUES, Ana Claúdia; COMERFORD, John; CHAVES, Christine. Traições, intrigas, fofocas, vinganças: notas para uma abordagem etnográfica do conflito in MARQUES, Ana Claúdia (org). Conflitos, Política e Relações Pessoais. Fortaleza, CE: Universidade Federal do Ceará/ FUNCAP/ CNPQ - Pronex; Campinas, SP: Pontes Editores, 2007. p 27-55. NOGUEIRA, C. O. & CASTRO, L. R. COVID-19 e Zika: narrativas epidêmicas, desigualdades sociais e responsabilização individual. In: GROSSI, M. P. & TONIOL, R. (orgs.). Cientistas Sociais e o Coronavírus [recurso eletrônico]. – 1ª ed. – São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020.p.632-636.Disponível em: http://anpocs.com/images/stories/boletim/boletim_CS/livro_corona/Ebook_Cientistas_Sociais_Corona v%C3%ADrus_baixa.pdf. Acesso em: 03 de dez. 2020. PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Revista Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, Ano 20, n. 42. 2014. P. 377-391. SANTOS, A. C. Itinerários do Medo: novos tempos de cólera. In: GROSSI, M. P. & TONIOL, R. (orgs.). Cientistas Sociais e o Coronavírus [recurso eletrônico]. – 1ª ed. – São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020. p. 641-644. Disponível em: http://anpocs.com/images/stories/boletim/boletim_CS/livro_corona/Ebook_Cientistas_Sociais_Corona v%C3%ADrus_baixa.pdf. Acesso em: 03 de dez. 2020. SOUZA LIMA, Antonio Carlos de & FACINA, Adriana. 2019. Brasil: porque (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação do Estado? In TEIXEIRA, C. C.; LOBO, A.; e ABREU, E. L. (org) Etnografias das instituições, práticas de poder e dinâmicas estatais. Brasília: ABA Publicações, 2019. P. 433 – 483.