Casey, um pacato cidadão que leva normalmente sua vida, entre trabalho e convivência com seu melhor amigo, um pequeno cão, tem sua rotina totalmente alterada depois que é espancado por uma gangue, acontecimento que provoca em sua rotina acentuadas transformações. Uma delas é matricular-se num peculiar, e infame, dojo de karate. A breve descrição é do filme estadunidense “A Arte da Autodefesa”, de 2019, dirigido por Riley Stearns, objeto de análise desta pesquisa. Dentre os diversos elementos para serem discutidos na obra, elencamos o problema da constituição social dos corpos pela violência associada à masculinidade, e como essa questão é trazida de forma caricata e ácida na película. Para tal, apoiamo-nos em estudos do antropólogo e sociólogo francês Pierre Bourdieu, especialmente no que tange à dominação masculina e a condição do feminino. No enredo, o karate é a maneira que Casey encontra para suprir sua personalidade supostamente frágil e “feminina”, para justamente “tornar-se aquilo que teme”. No dojo, conhece Anna, a praticante mais antiga, que nunca será faixa preta, justamente porque é mulher, e por seu consequente “instinto maternal”. A masculinidade é trazida pelo filme como a própria violência, que se explicita nas maneiras como o protagonista vai transformando seus hábitos de vida, suas atitudes e reações frente às situações cotidianas. Casey troca o habitual suco de laranja por café; deixa de estudar francês, uma língua “demasiadamente feminina” para dedicar-se ao alemão, “mais viril”; passa a ouvir death metal, e não mais música erudita. Por se tratar de um dojo que beira o absurdo, há diversas provocações no filme. Uma delas é uma espécie de convite para pensarmos justamente o que significa ser karateka. Ou seja, a obra escancara de maneira tão burlesca a violência extrema, com uma amostra de um humor corrosivo, que inevitavelmente instiga a ponderar melhor sobre o que se tem feito do karate na sociedade: os valores associados à referida prática são inerentes a ela, ou refletem interesses daqueles que se apropriam dela para conveniências e interesses particulares? Em especial, qual tem sido a masculinidade vinculada e engendrada pelas pessoas que têm ensinado e praticado karate? A Arte da Autodefesa é, evidentemente uma ficç?o, uma proposital alegoria que escracha diversas toxicidades sociais, em especial a “dominação masculina” (Bourdieu, 2021). A primeira vez que se assiste ao filme basta para sabermos que seu karate não é verdadeiro. Por outro lado, faz pensar até que ponto o karate que tem sido praticado por nós, na contemporaneidade, é ou não real.