Antiandrógenos, estrógenos e progestógenos. Perlutan, ciproterona e gestadinona. Cicloprimogyna, estradiol e depropovera. Vistas assim, desprovidas de contexto, parecem palavras aleatórias que não revelam muita coisa. No máximo, talvez signifiquem um pouco mais, quando citadas em congressos de endocrinologia, quando manipuladas em laboratórios químicos ou quando manuseadas pela indústria farmacêutica. Contudo, quando essas palavras circulam para além desses espaços, habitando esquinas, adentrando fóruns de discussão na internet, constituindo parte do repertório de vida de determinados sujeitos, muito de sua higienização é deixada para trás. Quando suturadas às experiências de vida de mulheres trans essas simples palavras, tomam uma outra materialidade e cria-se um contexto, que coloca o próprio estatuto de significação da saúde em disputa. Assim, nesse artigo, analisamos a relação entre os hormônios e as experiências de vida trans, como um aspecto simbólico de um debate mais amplo do campo da saúde, o caráter místico que a própria saúde assume em alguns contextos. A partir de entrevistas com 5 mulheres trans e de observação acompanhante de suas trajetórias de vida, argumentamos que o hormônio torna-se um agente social e político, que mesmo inumano, inventa possibilidades de humanidade, ao instaurar tecnologias de gênero particulares, nesse processo de cuidado em saúde das mulheres trans. Observamos, deste modo, como essas mulheres se inventam nessa relação com os hormônios e como essa subjetivação se dá tanto na ordem da transformação física, quanto produzindo novos contextos discursivos e práticos sobre isso, que insistimos em chamar de saúde. Dessa forma, evidenciamos que as demandas e litígios pelo acesso aos hormônios ultrapassaram o desejo de transformação do corpo e, esse processo de disputa coloca todo um projeto de saúde em jogo, que envolve (re)pensar a vulnerabilidade a que esses corpos são expostos, tanto quando consomem, quanto quando lutam para consumir hormônios.