A personagem ficcional do cinema e das histórias em quadrinhos Jessica Jones, é uma heroína que sofre com o controle mental de um abusador. Esse controle mental se observado sob o viés das teorias da análise de conteúdo (Bauer, 2002) e de discurso (Gill, 2002), é lido como uma metáfora para as relações agresssivo-abusivas, relações estruturadas sob violências dos mais variados níveis e que perpassam o cotidiano de vários corpos ocidentais, principalmente das mulheres. Nesse sentido, este trabalho buscou-se entender as construções socioculturais dessa personagem fictícia, a violência infligida a esse corpo e como essas violências se assemelham (ou são passíveis de analogia com) as do cotidiano e diagnóstico social brasileiro. Observamos como esse lugar de poder dos autores e autoras de abuso é construído, identificando através da Microfísica do Poder de Michel Foucault e verificando como este poder é salvaguardado quando tratamos de violências de ordem psicológica, dificultando o enfrentamento de questões que possuem raízes culturais.
Metodologicamente o artigo se debruça na análise da narrativa da primeira temporada da série Jessica Jones do universo MARVEL na Netflix, analisando os treze episódios a partir d’A linguagem Cinematográfica (2005) de Marcel Martin, destacando as situações lidas como violência de gênero ou analogias e metáforas para as mesmas. Considerando a direção de arte, roteiro, montagem e fotografia como meios cruciais que produziram imagens que retratavam sensações de submissão, impotência e pânico das vítimas destas relações, possibilitando esta leitura crítica de forma interdisciplinar sobre o universo dessa personagem.
Foram consideradas também na análise as histórias em quadrinhos Alias das edições 24 a 28 distribuídas pelo selo MARVEL, que contem quadros que ilustram de forma alegórica e em algumas situações de forma literal, a realidade e os estigmas de mulheres e dissidentes de gênero e sexualidade, que sobrevivem a vários tipos de relações agressivo-abusivas. As variantes de violência observadas tanto no produto audiovisual, como nos quadrinhos, podem vir a acontecer em qualquer vinculação onde é observada relação de poder, ultrapassando a normatividade de gênero e interseccionando com uma série de outras identidades. Entendemos, dessa forma, a posicionalidade dessa protagonista em um contexto feminino, ocidental, branco e heterossexual que pode ser ampliado se pensarmos nas demais personagens que integram essa narrativa.
Analisando o discurso e o conteúdo circunscrito, de forma interdisciplinar entre cinema, artes visuais e estudos de gênero, observa-se como as construções dessa personagem na plenitude de seus marcadores sociais transcendem o ficcional, tornando-se uma representação possível, ou mesmo uma analogia a situações reais de controle impostos por pessoas autoras de violência de gênero.