O contato entre ameríndios e não índios tem ocasionado impactos significativos sobre a saúde indígena, desde o período colonial com devastadoras epidemias até os tempos atuais, não apenas devido aos índices de mortalidade que persistem elevados, mas também, por gerar mudanças nos itinerários de cura tradicionais em virtude das complexas diferenças entre o sistema biomédico e médico indígena. A zona onde estes sistemas se encontram é chamada de intermedicalidade, compreendida como um processo gerador de saberes híbridos a partir de diferentes ciências. Este hibridismo não é necessariamente negativo, a problemática se estabelece quando o conhecimento biomédico é indicado de modo a sobrepor ou desvalorar o indígena, caminhado, portanto, na contramão do que preconiza a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Neste contexto, o presente estudo investigou as implicações da intermedicalidade sobre o sistema medico-parasitológico da comunidade indígena Fulni-ô através do levantamento de remédios antiparasitários utilizados, bem como, por meio da investigação dos saberes médicos. A pesquisa foi inicialmente aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco e pelas autoridades Fulni-ô. O universo amostral foi composto pelas lideranças locais, previamente esclarecidas sobre os objetivos do estudo, as quais confirmavam participação por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido. Para coleta de dados foram administradas listas livres e formulários semiestruturados, analisados qualiquantitativamente. Utilizou-se ainda o ANTHROPAC para medir o Índice de Saliência (I.S.) entre os remédios indicados. Dez lideranças foram entrevistadas, as quais indicaram 21 remédios para parasitoses intestinais, entres eles, 15 plantas, 4 medicamentos e o uso do sarro de cachimbo. Os remédios com maior I.S. foram o Mastruz (Chenopodium ambrosioides - 0,469), seguido pelo Albendazol (0,188) e o Melão de São Caetano (Momordica charantia - 0,129), evidenciando, assim, a inserção de medicamentos no itinerário terapêutico Fulni-ô onde o Albendazol ocupa posição de destaque em relação a 14 vegetais. Entretanto, é possível inferir que as plantas desempenham papel principal no sistema de cura, uma vez que nas listas livres são os primeiros recursos médicos citados. Os líderes em sua maioria (70%) dizem buscar primeiramente o tratamento com plantas em quadros de adoecimento, mas relatam que o uso da flora local pela comunidade tem diminuído devido à seca, a falta de conhecimento de alguns e especialmente em virtude do contato com o sistema biomédico. Desse modo, tanto os dados das listas livres quanto os discursos dos participantes mostram um cenário de intermedicalidade que evoca a necessidade de difusão e valorização dos saberes indígenas por parte dos profissionais de saúde inseridos na aldeia Fulni-ô, como também dos pesquisadores e órgãos responsáveis, desde os municipais aos federais, para que os medicamentes possam complementar o arsenal terapêutico local em favor da saúde individual e coletiva, porém sem impactar negativamente o conhecimento indígena.