O desamparo nos acompanha desde o momento em que, sem escolhas, somos lançados ao mundo. Esta dor, ainda que (re)significada e (re)elaborada pelas ações da cultura, não cessa de ser sentida e as suas reverberações conduzem o sujeito no curso da existência. A título de ilustração, nos vastos campos da literatura, defrontamo-nos com personagens tomados pela agonia da rejeição e do ódio. Eis o caso de Medeia, protagonista do filme homônimo, dirigido por Lars Von Trier, em 1988. Na narrativa em foco, baseada na obra do Eurípides, a sacerdotisa de Argos é abandonada por seu marido, Jasão, que, visando ascensão e poder social, não se envergonha de trocá-la pela filha do rei da cidade de Corinto, sem se interessar com a sorte dos próprios filhos. Desonrada e furiosa, Medeia planeja e executa a mais cruel e chocante vingança da literatura clássica ocidental, quando, com um só golpe, destrói seus inimigos e mata os filhos que teve com o traidor. Portanto, nossa pesquisa, numa conexão entre a psicanálise de base lacaniana e os estudos cinematográficos, pretende analisar, no corpus em cena, esta ambivalente personagem, sobre a qual (re)caem, ao mesmo tempo, vícios e prerrogativas que evidenciam a incapacidade dela de se desligar do Outro, a quem se encontra vinculada por laços afetivos dilaceradores, levando-a a cometer atrocidades, a fim de obter as realizações de seus anseios.