Este trabalho busca circunscrever o processo histórico de reconfiguração do Karatê moderno. O que se conhece atualmente como Karate é oriundo de uma pluralidade de práticas corporais combativas que se amalgamaram na ilha de Okinawa. Como grande parte das manifestações culturais deste local, o Karate foi resultado de influências de práticas vindas de países vizinhos, especialmente da China. Até o início do século XX era ensinado em segredo, para poucas e selecionadas pessoas. Sua popularização iniciou-se com Anko Itosu, quando começa a ensinar nas escolas de Okinawa. Na década de 1920, Gichin Funakoshi, discípulo de Itosu, é incumbido de apresentar a prática no Japão continental, onde o Karate começa a sofrer mais intensamente os efeitos da modernização. Visando compreender o processo de modernização do Karatê, este trabalho busca interrogar sobre as tecnologias políticas do corpo envolvidas no processo. Para tal, a emblemática figura de Gichin Funakoshi é de grande importância, já que é considerado por muitos o "pai do Karate moderno". A sociologia configuracional de Norbert Elias e a abordagem genealógica de Michel Foucault constituem os referenciais metodológicos da pesquisa. Por tecnologias políticas do corpo, termo cunhado por Foucault, entende-se as formas de saber e de intervenção que vão além das atribuições biológicas e voltam-se para o controle do corpo através de práticas discursivas e não discursivas. São estratégias que sujeitam o corpo aos mecanismos de poder através de práticas calculadas, organizadas e tecnicamente pensadas. Com a Restauração Meiji (1868) o Japão passa a sofrer fortemente as influências ocidentais e inicia seu processo de modernização. Após mais de duzentos anos fechados para as relações exteriores, os japoneses se veem obrigados a reconfigurar seus valores, tradições e práticas. Antigos costumes passam a ser considerados obsoletos em vista dos apelos à formação de novas maneiras de pensar, sentir e fazer política mais adequadas às demandas do emergente novo Japão. A ciência e o investimento em tecnologia e em educação passam a ser prioridades à formação do Estado-nação japonês. Adota-se o capitalismo e reformula-se a política através do estabelecimento de uma constituição. Além disso, deu-se início ao processo de constiuição das forças armadas nos moldes ocidentais modernos. Em sua autobiografia, Funakoshi afirma que o Karatê foi visto como um aliado no preparo dos corpos para fins militares. A prática, então, passa a ser ensinada nas escolas de Okinawa por Anko Itosu, um dos mestres de Funakoshi, que faz uso de uma pedagogia inspirada na formação de soldados europeus, evidenciando os objetivos e intervenções das tecnologias políticas do corpo que passam a legitimar a prática do Karatê nos primeiros anos do século XX: forjar corpos dóceis e obedientes. Por ser professor, duas décadas mais tarde, Funakoshi é incumbido de apresentar o Karatê no Japão continental, o que demandou alterações técnicas e de nomenclatura, como o próprio nome: de mãos chinesas para mãos vazias. É neste contexto que se dá a reconfiguração do Karatê como esporte moderno: o Karatê é institucionalizado e regulamentado por federações.