A loucura solidificou-se, ao longo dos séculos, como uma ameaça contagiosa, o que ocasionou seu isolamento social. O afastamento civilizatório tornou obscura sua origem, bem como seus desdobramentos na subjetividade humana. Sobre a ótica da psicanálise, a loucura nos confronta já nos primeiros momentos, no alvorecer da vida, quando somos introduzidos no terreno do desamparo e das intromissões da realidade. Nossa precariedade, enquanto sujeitos, coloca-nos à mercê dos eventos banais da existência, suscetíveis de causar os terrores mais inomináveis. O nascimento é, portanto, um despejo que nos impele a abandonar a proteção intrauterina e lançar-se, sem promessa de êxito, num mundo de múltiplos sentidos, os quais reclamam significações. Para alcançá-las, a criança cinde o universo ao seu redor, entre bom e mau, expelindo as aflições e ameaças aniquilatórias, ao passo que absorve o que é gratificante. Essa economia, contudo, é passível de perturbação, sobretudo, em decorrência das frustrações que acompanham o desenvolvimento emocional. A fim de elucidar os conhecimentos a respeito da loucura, debruçar-nos-emos sobre o conto Caixinha de Música, escrito por Caio Fernando Abreu, em 1982, e que compõe a coletânea Morangos Mofados. A diegese tem como cenário um quarto escuro, palco para o drama de um casal que embarca numa jornada rumo à redescoberta de seus fantasmas, onde o estranhamento e a contiguidade assomam os espíritos e comprometem o real. O (des)encontro com a razão se dá a partir de um crime passional, perpetrado pelo homem/amante atormentado pela “verdade” sobre sua companheira. Destarte, alinharemos os constructos psicanalíticos desenvolvidos por Melanie Klein (1991), acerca dos estados psicóticos, com o aparato histórico fornecido por Foucault (1997), em sua obra História da Loucura na Idade Clássica. Buscamos, portanto, explorar na tessitura literária de Caio Fernando Abreu, as peculiaridades da fragmentação egoica, na perspectiva do protagonista, problematizando a imagética do louco como débil e anormal.