Este e-book é resultado do IX Congresso Internacional da ABEH (IX CINABEH) realizado de 28 a 30 de novembro de 2018 no Centro de Convivência e Instituto de Cultura e Arte ( ICA) do Campus do PICI da UFC e no Centro Dragão do Mar de Arte e Culturade Fortaleza. O evento foi realizado
pela Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH) em parceria com a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e a Universidade Federal do Ceará (UFC).
Assumi a coordenação dessas atividades por ter sido eleita presidenta da ABEH em 2016, se tornando a primeira pessoa a se posicionar politicamente enquanto travesti a ocupar este espaço. Durante a gestão construímos essa proposta de pensar o conhecimento de maneira intersecciona- lizada, aproximando diversidade sexual, gênero e raça. Essa ideia surgiu a partir dos debates na Diretoria e possui relação direta com minha experiência de vida como uma travesti docente e pes- quisadorada UNILAB. A minha presença nessa Universidade e a presença dessa Universidade em mim, contribuiu para que surgisse essa integração epistemológica internacional a partir dos países de Língua Portuguesa. A diretoria da ABEH foi desafiada a construir um tema que explicitasse a nossa intenção. Foi assim que nasceu a proposta: “Diversidade Sexual, Gênero e Raça: Diálogos Brasil-África”.
Não se trata apenas de realizar um congresso internacional, o desafio era tocar nas feridas que surgem a partir das violências cometidas contra as pessoas que estão de alguma forma conecta- dascom este tema. A intenção maior era provocar os pesquisadores e as pesquisadoras para que pudéssemos pensar de maneira mais ampla, para além das caixinhas, percebendo a intersecção que existe entre nossos estudos e entre as vidas e as mortes que estudamos de maneira separada. Não se trata apenas de falar sobre a violência contra os corpos das pessoas, é preciso pensar na violência epistemológica que as vezes cometemos quando não conseguimos ver as pessoas como sujeitos/as da sua própria história. No mundo da história vivida, ao contrário do mundo criado em parte das nossas histórias escritas, não existe essa separação radical, as diferenças convivem no mesmo espaço e muitas vezes no mesmo corpo, carregando o estigma da violência e do preconceito.
Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU) desde 2016 o Brasil é o país que mais mata tra- vestis, transexuais e pessoas não binárias no mundo. Como mostrou uma das reportagens do jornal Estadão de 05 de junho de 2018 a taxa de homicídios de negros no Brasil chega a 40,2, enquanto a de não negros fica em 16 por 100 mil habitantes. Pessoas negras e LGBTIs, brasileiras e estrangeiras, resistem cotidianamente para sobreviver nesta sociedade machista, racista e xenofóbica. Nossas insti- tuições insistem em exterminar (ou capturar) as diferenças como forma de higienizar a humanidade.
Ser negro ou negra LGBTI no Brasil muitas vezes significa passar pelas situações de opressão, descriminação, preconceito e violênciaque anossa sociedade conservadora produz. Os grupos eco- nômicos, políticos e religiosos, fazem uso do estado, das igrejas e de outras instituições disciplinares e de controle, para negar os direitos e colocar em prática os efeitos nefastos da necropolítica. Ao mesmo tempo que temos lutas e lutos que poderiam ser vistos como algo em comum, caminhamos para uma sociedade cada vez mais segregada, onde negros e LGBTIs neoliberais falam em meritocra- cia e empreendedorismo de si.
É isso que Mbembe chama de "O devir negro do mundo" em ação, há uma tendência de indivi- dualização das conquistas e das derrotas. Mas, ao mesmo tempo há uma flexibilização dos direitos, uma tentativa de destruição das Legislações Trabalhistas e Ambientais, de negação da própria História, os indivíduos não tem passado (ou produzem um passado sem fundamentação histórica). Vivemos em um eterno presentismo, onde o passado e o futuro coletivo são descartáveis, aprende- mos a fazer passados e futuros através de memes, como se todas as temporalidades se resumissem as linhas do Twiter, do facebook, do instagran e do whatsaap. Essa não é apenas uma realidade dos novos negros e LGBTs do mundo, é um devir negro ou LGBT do mundo, estamos nos transformando em peças descartáveis com a ilusão de que basta querer para conseguir, como se fosse apenas uma questão de vontade pessoal.
Nesse contexto de pós-verdade não podemos falar nem mesmo das política de identidade, por- que tudo é visto como“vitimismo”. A expressão “mimimi” se transformou em uma maneira velada (ou não) de mostrar que concorda com as atrocidades da sociedade e que é contra as vítimas, legi- timando (muitas vezes de maneira cínica) o chicote dos agressores. Mas, as vezes quem fala que os nossos estudos ou as nossas lutas são apenas “mimimi”e“vitimismo” são os próprios negros e homossexuais, impregnados por essa visão racista e LGBTIfóbica. Chegamos a uma situação que precisamos defender a legitimidade das políticas de identidade e dos movimentos históricos con- quistados ao longo do século XX. Mas, essa situação não pode nos impedir de pensar para além das fronteiras da identidade, de encontrar as brechas, as fissuras, de caminhar fora das linhas desses- contornos, de perceber os encontros, os choques e as conexões que existem entre esses conjuntos.
Aprendemos a estudar separadamente os coletivos de cada diferença, como se cada pesquisador ou pesquisadora fosse responsável por um grupo, se tornando especialistas nesse ou naquele tema. Precisamos de uma visão mais ampla, capaz de perceber as diferenças,sem esquecer da(re)uniões e das intersecções que fazem parte dessa cartografia. As identidades negrasnão estão isoladas, elas se cruzam comas identidadesLGBTIs e produzem novas geografias, que borram essas fronteiras. Não podemos falar de racismo e de LGBTIfobia sem relacionar com classe, com religiosidade, com origem geográfica, com a ausência de saúde, educação e de empregabilidade, sem AFROntar esse momento histórico de avanço das forças conservadoras. Não se trata apenas de um debate sobre o tipo de ciência que queremos, é sobre o tipo de sociedade que desejamos, não podemos aceitar os retroces- sosque estão sendo planejados paraosnegros e as negrasLGBTIsdo Brasil, das Américas e das Áfricas.
Este e-book tenta expressar um pouco desse sentimento de resistência, com a presença dos saberes de pesquisadores/as que contribuem com produções científicas e que lutam pela superação do racismo,do machismo, da LGBTIfobia e da Afrofobia. Agradeço a todos/as que contribuíram para o sucesso do IX CINABEH. A Diretoria da ABEH, aos pesquisadores/as que disponibilizaram seus textos para esta publicação, a UNILAB, a UFC, a CAPES, oMDH, a SEPPIR, ao Conselho Federal de Psicologia, ao Governo do Estado do Ceará, SEDUC-CE, ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, a Diretora LGBT Marina Reidel, a Deputada Federal Luiziane Lins, ao Ex Deputado Federal Jean Wyllis, a extinta SECAD/MEC,ao Departamento de AIDS do MS, a UNAIDS e a todos(as) que participaram desse Congresso.
Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Presidenta da ABEH na gestão 2017-2018